Refletir sobre a verdade na filosofia é, pois, transcender, de certo modo, as inúmeras
pontuações e usos que o termo pode assumir na vida comum e até mesmo na atividade
científica. Com efeito, poucos termos podem contar com tamanha e particular apropriação,
como o de verdade. É possível que se veja aí a importância e a indispensabilidade do que se
esconde nele, para o encaminhamento das relações sociais e humanas, até mesmo para a
sobrevivência da espécie. Sem verdade não se vive, seja lá a circunstância em que se está.
Embora se possa indefinidamente discutir o que seja verdade nos métodos e descobertas das
ciências, é muito certo que ela, ou algo assemelhado, se deseja como resultado, mesmo
provisório, do esforço de pesquisa. Ela “decide” inexoravelmente na vida humana.
Em Filosofia, ao longo de toda sua história de mais de dois milênios, verdade é
palavra-chave dos pontos de vista metafísico e gnosiológico, ambos, aliás, bastante
interligados. Pode-se mesmo traçar um arco desde o que os gregos, com Parmênides,
entenderam por alétheia até a “salvaguarda do ser”, como se permite exprimir o filósofo
Heidegger. O campo de exploração do sentido é muito vasto. Limitamo-nos a lançar um
olhar forçosamente breve sobre algumas ocorrências de sentido na modernidade e propor um
“passo de volta” ao pensamento de Santo Tomás de Aquino, para, quem sabe, resgatarmos
alguma coisa que, proh dolor!, perdeu-se nesse caminho.
Um exemplo notável está aos olhos de todos. A
recente crise econômica mundial é o resultado de uma “verdade” de gestão financeira, que se descobriu, apesar de todos os cálculos e projeções, uma ficção ou mentira, que desencadeou
por todo o mundo um terremoto de que ainda não conhecemos todas as conseqüências.
Que razões teriam presidido a essas formas de vida econômica, política, social, que se
mostram hoje tão fragilizadas, líquidas e descartáveis? Elas se enraízam certamente no ethos
da Modernidade, construído à base de concepções idealistas da Verdade, cujos nomes nos são
bem conhecidos: idealismo-racionalismo, pragmatismo, relativismo, niilismo, devendo-se
acrescentar o voluntarismo e a hermenêutica, que também têm sua pretensão de verdade.
Kant
não é, certamente, o pai geral de todas essas tendências. Mas é quem “desnaturalizou” com
mais radicalidade a antiga e venerável noção da verdade-adequação, oriunda de Aristóteles.
Mas talvez devamos recuar até Descartes, para o qual, como é muito sabido, a ordem de
fundamentação da filosofia inicia-se na mente, e não na natureza das coisas. Pretende
construir seu sistema tendo por base uma verdade absolutamente indubitável: Eu penso, logo
sou (Cogito, ergo sum). Ele analisa essa idéia-base em suas características constitutivas, para
admitir como verdadeira qualquer idéia que àquela se assemelhe. “As coisas que concebemos
clara e distintamente são todas verdadeiras”, vai escrever na quarta parte do Discurso de
Método. Na realidade, essa proposição dependerá de outra que afirme (ou postule) a
existência de Deus e sua absoluta e essencial veracidade. Vale dizer, que o critério de verdade
das proposições, além da verdade do cogito, está suspenso à existência de Deus, que é veraz e
não pode nos enganar. Percebe-se que o pensamento cartesiano gira em torno de si mesmo e,
de certo modo, se vê obrigado a apelar para algo objetivo e que, entretanto, é sempre
subjetivo. Clareza e distinção de idéias são condição ou critério de verdade, mas não são a
verdade, e não permitem à consciência sair do seu radical isolamento subjetivo.
Também em Kant, a verdade não tem mais seu fundamento nas coisas, com referência
às quais um juízo da inteligência se estabelece na divisão ou composição, mas é uma pura
relação imanente da inteligência. Na Lógica, vai definir a verdade formal como a
concordância do conhecimento consigo mesmo e na Crítica da Razão Pura, entende a
verdade como a concordância do conhecimento com seu objeto, ou, melhor dizendo, o acordo
do juízo com as leis imanentes da razão. É sempre verdade que Kant não se afasta da relação
gnosiológica essencial entre o sujeito e o objeto-termo, mais ao confundir esse com o
conhecimento em si não-contraditório, terá assim uma verdade totalmente imanente ao
sujeito .
Se a verdade kantiana é uma correspondência fechada entre o conhecimento e seu
objeto, a verdade no pragmatismo, em mais de um aspecto, àquela se liga, não fosse pela
supremacia que em ambas se dá à razão prática sobre a teórica
Na filosofia contemporânea, não está ausente a preocupação com a verdade, mas o
foco se centra na questão epistemológica, sem o pano de fundo ontológico e ético. São
rediscutidas as tendências até aqui esboçadas, mas para se ver o que delas se pode aproveitar,
se há algo a aproveitar-se, nos processos e resultados da ciência. Não parece de todo
infundada a impressão de que, quando se fala em verdade, está-se falando não tanto em seu
conceito, mas em seus critérios ou em suas condições. É o que se pode verificar na sintética
exposição de Moser, Mulder e Trout7
. É bem verdade que esses autores privilegiam a tradição
anglo-saxônica de pensamento, voltada para os critérios de validação das asserções, tomando se por base a objetividade da experiência. É o caso da discussão levada a efeito por Russell e
Moore que entendem a seu modo o realismo e o idealismo8
. Outra vertente, de grande
interesse, é a francesa, na linha de Michel Foucault que busca vincular verdade e história,
vista essa como “acontecimentalização”, como explica Candiotto.
Tomás de Aquino tem como cenário ontológico
de fundo a realidade que é termo da ação criatural divina e para a qual o conhecimento
humano se inclina, com o intuito de apreendê-la e de poder emitir um juízo verdadeiro e
adequado a seu respeito. Mas sempre uma apreensão e um juízo aproximado, pois sabe Tomás
que a realidade criada tem com o Criador, ou seja, com as idéias arquetípicas desse, uma
relação de ser pensada e de ser, que só o Criador conhece. É o limite “negativo” de todo
conhecimento humano, a incognoscibilidade última que, entretanto, sustenta a inteligibilidade
“quanto a nós”, isto é, que está a nosso alcance. Nosso infinito desejo natural de conhecer,
como se exprimira Aristóteles, na primeira linha de sua Metafísica, pode avançar sobre o
desconhecido, para iluminá-lo e iluminar-se. Mas uma fronteira de sombras espera-o, desde
que ele começa o seu esforço em direção à verdade.